.
Este artigo olha para uma Páscoa no seio de uma família judaica tradicional. O objectivo é o de dar a conhecer essa Páscoa diferente, e não o de criar qualquer tipo de comparaçóes ou polémicas. Por isso, evitam-se propositadamente muitos detalhes da festa e da profundidade dos símbolos que ela encerra.
.
A Páscoa em Israel
De todas as três grandes festas judaicas, Páscoa, Pentecostes e Tabernáculos, a Páscoa é, sem dúvida, a que tem uma vertente familiar mais vincada. Era na Páscoa, na cidade de Jerusalém, que a família se juntava como um corpo unido, como organismo vivo, como o núcleo de uma nação que se erguia. Por isso, ainda no Egipto, ao instituir esta celebração (Êxodo 12), Deus foi muito claro, orientando o povo no sentido de que o cordeiro – o símbolo central da festa – deveria ser suficiente para a refeição de uma família. Mas, no caso de esta ser pequena demais, então ela deveria convidar outra, a fim de que o número de pessoas fosse suficiente para se consumir totalmente o cordeiro (Êx. 12:3b-4).
Desde então, desde há quase 35 séculos, a cada ano que passa, as famílias judaicas reunem-se em torno do cordeiro pascal, sejam elas grandes ou pequenas, estejam elas em Israel ou na Diáspora. Continuam a fazê-lo exclusivamente na mesma data que o Senhor então lhes ordenou: o crepúsculo do dia 14 do mês de Abibe. As múltiplas perseguições, os pogroms, os ghettos, a Inquisição ou o Holocausto nunca foram suficientes para apagar nestes filhos de Abraão a memória da sua amada Páscoa. Páscoa, Pesach em hebraico, que significa "passar por cima", "redenção". E o facto de o terem feito centenas de vezes em condições tão adversas, o paradoxo de erguerem as mãos para celebrarem uma liberdade histórica que muitas vezes lhes estava negada no próprio momento, tem feito deles um povo forte a quem as maquinações mais diabólicas não têm conseguido resistir.
A história de sacrifício do povo judeu orientou-o a juntar símbolos à Páscoa que a Páscoa do Egipto não viu. E essa nova visão teve sempre como objectivo maior o de explicar a cada um deles as razões de ainda estarem vivos. Por isso, o Seder é também uma festa de sobrevivência. Na verdade, não é uma refeição, e não se pretende que deva ser encarado como tal. O Seder é um tempo de partilha, de explicação, de discussão e de transmissão da história de redenção de um povo agradecido, e que quer continuar a existir.
Evoca-se, pois, aquela ceia da noite em que os primogénitos judeus foram poupados (Êx. 12:23) enquanto todo o Egipto gemia debaixo da acção do Destruidor. Como se disse, o Seder, que significa "ordem", no sentido de "sequência", deixou de ser uma ceia como a original. Já as famílias não comem de pé, nem à pressa, nem de cajado na mão, e nem de sandálias nos pés (Êx. 12:11). Porque este povo já não é escravo de nenhum outro povo. Este Seder é celebrado por um povo livre. E um povo livre não tem pressa, nem motivos para fugir. Enquanto come, um povo livre descansa em almofadas confortáveis, e reclina-se sobre o seu lado esquerdo, o do coração, enquanto saboreia com ele a sua liberdade. Nesta noite, a mesa é surpreendente. Há lugar para o pão sem fermento (Matzah), vinho, e pequenas tigelas com água salgada ou vinagre. Num soberbo prato maior, primorosamente decorado nos dias de hoje, vários elementos figuram como símbolos de alguns capítulos desta história tão trágica como sobrenatural, de Israel: um osso de cordeiro, um ovo cozido, verduras (salsa, rabanetes, aipo, agrião ou batata), ervas amargas, (alface ou rábano) e uma mistura espessa composta de tâmaras, maçãs, amêndoas e nozes trituradas, aromatizadas com vinho doce e canela.
No Seder de hoje, o cordeiro já não está amplamente presente, mas apenas representado. Isto porque sem Templo em Jerusalém não é possível que os sacrifícios levíticos possam ter lugar. Um osso da tíbia de um cordeiro, é tudo quanto resta da memória primitiva. No entanto, continua a ser ele o elemento maior sobre o qual a redenção assenta.
Os pães asmos são um símbolo dos que valorizam o abandono do Egipto, daqueles que tiveram a coragem de deixar o fermento para trás. O fermento, que representa todas as doutrinas venenosas e legalistas, capaz de levedar toda a massa. Durante sete dias, ele está banido das vidas dos judeus, tal como foi ordenado pelo Senhor no final do tempo de escravidão. (Êx. 12:18-20). Para Israel, começar uma vida nova implicava então que o fermento espiritual estivesse ausente, e isso tinha de ser demonstrado de uma forma prática e simbólica. Milhares de anos depois, os seus filhos continuam a honrar esse princípio, elegendo a Páscoa ano após ano como um tempo de novos começos, de onde os conceitos duvidosos são arrancados. Com um pouco de alface que se mergulha na mistura de tâmaras, maçãs, amêndoas e nozes, se saboreia a lembrança da cor e da consistência do barro e dos tijolos do Egipto. O Charoseth, assim se chama esta pasta espessa, traz-nos à memória a aflição dos escravos hebreus obrigados a construir as grandes cidades de Faraó. Hoje, a sua presente liberdade, não os isenta da obrigação de honrar os que pereceram, ao mesmo tempo que dão valor à sua condição actual.
Mergulha-se a salsa ou o agrião na água salgada, e prova-se. A água salgada relembra as lágrimas do povo vertidas não só no Egipto, mas ao longo de toda a sua história. E as verduras, que nos remetem para a frescura e doçura da primavera, não podem ocultar o gosto amargo que todo o judeu tem sentido durante os séculos de existência contrariada e vexada por outros homens.
Essa resistência é simbolizada pelo ovo que tem parte nesta mesa pascal. Porque, se quase todos os alimentos se tornam mais macios quando são continuadamente cozinhados, isso não acontece com o ovo. Ao contrário de qualquer lógica, quanto mais ele é sujeito à cozedura, mais duro se torna. E isso é uma figura do povo de Israel. A fornalha em que se habituou a viver tem feito dele um povo sobrevivente e cada vez mais forte. Na sua História, quando parece que tudo está perdido, há sempre uma porta que se abre, ou uma solução que nasce.
Nesta noite palpita um só coração judaico, que tem transmitido vida aos mais novos, de geração em geração. Porque elas, as crianças, estão sempre presentes. E espera-se que elas façam as 4 perguntas do preceito da festa, aquelas mesmas perguntas que os seus pais, e os pais dos pais têm feito ao longo dos séculos. Os mais velhos, esses aguardam, ansiosos por responder e fazer a ponte com o passado. Indagam, então, as crianças:
"Em todas as outras noites podemos comer pão com fermento ou pão ázimo. Por que é que nesta noite só comemos pão ázimo?"
"Em todas as outras noites costumamos comer toda a espécie de verduras. Por que é que nesta noite só comemos ervas amargas?"
"Em todas as outras noites não molhamos as verduras. Por que é que nesta noite as molhamos duas vezes?"
"Em todas as outras noites costumamos comer sentados ou reclinados. Por que é que nesta noite só comemos reclinados?"
O Templo, o de Salomão ou o de Herodes, há muito que já não existem. E embora o desaparecimento de cada um deles tivesse sempre trazido consigo o abandono forçado da terra e o exílio, o coração do judeu nunca deixou a Terra de Israel. E tem sido esse coração o grande guardião de uma esperança que nunca morre. Durante cerca de 1900 anos, em cada festa da Páscoa, no seio de cada família, ainda ecoa e continuar-se-á a ouvir a declaração que também é uma oração: "Para o ano, em Jerusalém!".
Eduardo Fidalgo
.