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Palácio de S. Bento. Assembleia da República. Corria o ano de 1992 e tinha lugar a Reunião Plenária de 31 de Março. Já se passaram 19 anos. Aliás, completam-se hoje. Nessa reunião, era suposto darem-se alguns passos no sentido de serem feitas as pazes com umas quantas páginas negras da nossa História, de se aquietarem as suas memórias e de as fazer descansar para sempre. Mas foi um dia em que o perdão ficou à porta. O que representava esse dia?
Esse dia representava uma dupla efeméride de dois outros 31 de Março. A primeira, relativa a 1492, e que teve um peso enorme na História de Portugal e de Espanha. Exactamente 500 anos antes, foi o início da perseguição na Península Ibérica aos judeus. Efectivamente, foi naquele dia que Isabel, a Católica, assinou a expulsão de todos os judeus dos territórios controlados pela coroa espanhola. Quatro anos mais tarde foi a vez de os portugueses imitarem os vizinhos, num episódio com trama e conspiração palacianas, com cheiro a noivado e coroa real, o mesmo é dizer, a mulheres e poder para governar. A segunda efeméride dizia-nos exclusivamente respeito a nós, portugueses: cumpriam-se nesse dia 171 anos exactos sobre a Extinção da Inquisição. Estavam, pois, presentes, todos os ingredientes para se poder voltar mais uma página dos nossos deveres éticos e morais pendentes.
Aliás, nesse mesmo dia de 1992 em que o Parlamento português reuniu, também teve lugar, nas Cortes Espanholas, uma sessão solene que lembrava o início das hostilidades contra os judeus. Nuestros hermanos entenderam a importância desse momento da sua História. E, em Portugal, a lógica dizia que se deveria aproveitar a sua força para se tentar dar uma expressão digna a esta forma de dizer “Perdão!”. Assim, um dos partidos com representação na Assembleia da República propôs a aprovação pelo hemiciclo do Voto n.º 16/VI, de “Condenação pelas discriminações feitas pela Inquisição”.
Ao lermos o texto que consubstanciava aquele documento, iremos encontrar registo de factos e exposição de intenções. Factos que a História confirma, e boas intenções para quem nunca é tarde para dizer “Mea culpa!”. Mas, vejamos o teor do documento sujeito a votação nesse dia:
Voto n.º 16/VI
Condena as discriminações feitas pela Inquisição
Decorre este ano o V Centenário do Início da Expulsão dos Judeus da Península Ibérica.
Foi, com efeito, a 31 de Março de 1492 que Isabel, a Católica, assinou o decreto que baniu da permanência em Espanha os membros daquela comunidade.
Em Portugal, D. Manuel I viria a assinar em Muge, a 5 de Dezembro de 1496, diploma de idêntico teor.
A expulsão dos Judeus e dos Mouros, as conversões forçadas e demais perseguições que lhes foram movidas inserem-se numa das piores tradições políticas da história europeia e nacional, que, aliás, em Portugal, foram, depois, expressamente reparadas pelas Cortes, a 17 de Fevereiro de 1821, renovando, confirmando e pondo em prática antigos direitos que, por tradição, usufruíam no País.
Nestes termos, por ocasião do V Centenário da Expulsão dos Judeus da Península Ibérica, a Assembleia da República, expressão legítima da vontade nacional e intérprete dos valores constitucionais que hoje inspiram o nosso país e que afastam qualquer arbitrariedade racial ou religiosa, condena as discriminações feitas pela Inquisição e confirma solenemente que o referido decreto de D. Manuel I e toda a legislação conexa estão inequívoca e definitivamente revogados da ordem jurídica portuguesa. (a ênfase é minha)
Porém, tudo não passou de uma jornada de boas intenções. Foi com um forte sabor a obscenidade que ficámos a saber que o voto não foi aprovado, tendo sido rejeitado pela maioria dos deputados. Com efeito, com o peso de um epitáfio, tudo o que ficará para a nossa História democrática recente serão sempre estas palavras:
“Submetido à votação, foi rejeitado, com votos contra do PSD e do CDS, votos a favor do PS, do PCP, do PSN e dos Deputados independentes Mário Tomé e Raúl Castro e a abstenção de Os Verdes.”
Não consigo deixar de pensar neste elevado momento da democracia como um dos exemplos mais representativos, mas escondido – para nossa vergonha – no “baú dos nossos tesourinhos deprimentes”.
O que define um homem? O que define um parlamentar? É voz comum ouvir-se dizer que para um político o que é verdade hoje não o será amanhã. Mas qual a escala de valores e quais as prioridades pelas quais ele responde, e que aplica na sua vida, de forma a que os seus actos surjam à luz do dia como acções dignas de um ser humano completo? Será que ele age em primeiro lugar como Homem ou como político? Como um ser moral ou como empregado (descartável) de um partido? O que é certo é que a arte de esgrimir com as palavras pode levar qualquer homem a tomar posições tão ridículas quanto irreconciliadas, consigo mesmo, e com o mundo. A esse respeito, Mahatma Gandhi escreveu:
“Um homem não pode fazer o correcto numa área da vida, enquanto está ocupado em fazer o errado noutra. A vida é um todo indivisível.”
A Bíblia vai mais longe, ao dizer:
“Ai dos que ao mal chamam bem e ao bem, mal! Que fazem da escuridade luz, e da luz, escuridade, e fazem do amargo doce, e do doce, amargo!” – Isaías 5:20
Não resisto a transcrever apenas um pouquinho dos argumentos (?) que foram apresentados contra a aprovação do documento:
“… o que este voto pede à Câmara é, nem mais nem menos - e convém lembrar o texto, para não estarmos a falar em abstracto -, que a Assembleia da República «condene as discriminações feitas pela Inquisição e confirme solenemente que o referido decreto de D. Manuel I e toda a legislação conexa estão inequívoca e definitivamente revogados da ordem jurídica portuguesa». Consideramos que a apresentação de votos desta matéria desprestigia esta Assembleia, por razões muito simples.”
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“Sr. Presidente, nós nem queríamos acreditar no que líamos, quando recebemos este voto, pois ele não só tem implícita uma noção completamente reducionista da nossa história como tem uma noção ainda mais grave de que herdamos uma espécie de culpa colectiva pelos actos dos nossos antepassados em função de uma determinada interpretação, essa sim, minoritária e reducionista da história, que, evidentemente, é inaceitável.”
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“Mas não é sério querer pôr esta Assembleia a aprovar votos de condenação da Inquisição, votos de condenação de legislação do século XVI e daqui a pouco até dos séculos XV, XIV, XVII ou XVIII. Há muitas coisas que, do nosso ponto de vista, são inaceitáveis. Mas o ponto de vista contemporâneo é para aquilo que é inaceitável aos olhos de hoje. Ora bem, querer fazer este tipo de revisão da história não é grande política e é péssima história.” (a ênfase é minha)
Sem comentários. A 31 de Março de 1992, Portugal perdeu, mais uma vez, uma boa oportunidade para dizer “Perdão!”. E sobre este assunto, quem sabe, se a última oportunidade. Foi mais fácil a fuga em frente, e bastante mais conveniente. Sem perdão!
Eduardo Fidalgo
Não houve qualquer interesse em ligar argumentos a pessoas ou partidos específicos. Por isso, se omitiram nomes e denominações, salvo na transcrição do resultado da votação, de carácter factual.
Para os que desejem ler na íntegra a discussão que antecedeu esta votação:
http://debates.parlamento.pt/?pid=r3 > Assembleia da República (1.ª série) > Índice de Diários > VI Legislatura (1991-1995) – 1.ª Sessão Legislativa > Diário N.º 46 > Páginas 1454 a 1458