quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Se isto é um Homem



A páginas tantas ...

Se isto é um Homem

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Häfting: aprendi que eu sou um Häfting. O meu nome é 174 517; fomos baptizados, guardaremos até à morte a marca tatuada no braço esquerdo.
A operação foi levemente dolorosa e extraordinariamente rápida: puseram-nos todos em fila e, um a um, pela ordem alfabética dos nossos nomes, passámos diante de um hábil funcionário munido de uma espécie de punção com a agulha muito curta. Ao que parece é esta a verdadeira iniciação: só "mostrando o número" se recebem o pão e a sopa. Foram precisos vários dias, e não poucos socos e bofetadas, para que nos habituássemos a mostrar o número prontamente, de forma a não atrapalhar as operações diárias de distribuição da comida; foram precisos semanas e meses para que aprendêssemos o som em língua alemã. E durante muitos dias, sempre que o hábito dos dias livres me levava a procurar as horas no relógio de pulso, no seu lugar aparecia-me ironicamente o meu novo nome, o número bordado em sinais azulados debaixo da epiderme.
Só muito mais tarde, e pouco a pouco, alguns de nós acabaram por aprender algo da funesta ciência dos números de Auschwitz, em que se compendiam as etapas da destruição do judaísmo da Europa. Aos velhos do campo, o número diz tudo: a época de entrada no campo, o comboio de que se fazia parte, e, por consequência, a nacionalidade. Cada um tratará com respeito os números de 30 000 a 80 000: já só restam algumas centenas, e indicam os poucos sobreviventes dos guetos polacos. Convém abrir bem os olhos quando se entra em relações comerciais com um 116 000 ou um 117 000: estão reduzidos a cerca de quarenta, mas trata-se dos gregos de Salónica, é preciso não se deixar enganar. Quanto aos números altos; contêm uma nota essencialmente cómica, como acontece com as expressões "caloiro" ou "recruta" na vida normal: o número alto típico é um indivíduo pançudo, dócil e ingénuo ao qual podes fazer acreditar que na enfermaria distribuem sapatos de couro para indivíduos de pés delicados, convencendo-o a correr até lá, deixando a sua marmita de sopa "à tua guarda"; podes vender-lhe uma colher por três rações; podes mandá-lo ter com o mais feroz dos Kapos, para lhe perguntar (aconteceu-me a mim!) se é verdade que o dele é o Kartoffel­-schälkommando, o Kommando Descasca-Batatas, e se é possível alistar-se.

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Coordenação de Eduardo Fidalgo # Excerto da obra "Se isto é um Homem" (2002, Colecção Mil Folhas, 15 - Público), de Primo Levi (1919-1987). Judeu italiano, foi capturado a 13 de Dezembro de 1943, deportado para o campo de concentração de Fossoli e em Fevereiro de 1944 para Auschwitz.

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